É curioso ou preocupante analisar como o Manifesto Antropófago é uma obra que poderia estar sendo escrita agora mas ainda não foi ao todo compreendida, muito menos por todos. A dicotomia de ideias, sejam elas do cunho que for, político-social-econômico, afasta as pessoas do entendimento de ‘ser humano’.
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O Impossível, 1940 | Maria Martins, Escultura| Registro fotográfico João L. Musa/Itaú Cultural
Na necessidade de lembrar que o conceito do que se entende de ser humano, ou não vamos tão longe, de um certo povo, não existe a priori, ela parte de uma construção de uma identidade com a qual as pessoas se identificam, e essa ideia se constrói a partir do que já existe, como bem coloca o Homi K. Bhabha.
“Finalmente, a questão da identificação nunca é a afirmação de uma identidade pré-dada, nunca uma profecia autocumpridora – é sempre a produção de uma imagem de identidade e a transformação do sujeito ao assumir aquela imagem.(…) A identificação, como inferimos dos exemplos precedentes, é sempre o retorno de uma imagem de identidade que traz a marca da fissura no lugar do Outro de onde ela vem.”
Um entendimento de ‘ser’ deveria obrigatoriamente perpassar por tudo aquilo que precede a existência em si, a necessidade de compreender que raizes comuns dão frutos similares, e daí surge essa relação entre o eu e todos, e todos e o eu, já que a construção é uma mão de via dupla em constante movimento, pois essa construção da pessoa em todos os aspectos (imagético, psicólogo, cultural,…) não é feita essencialmente de dentro para fora. Nós existimos posteriormente ao pensamento, exigindo que nossa condição primária dependa de uma contrução baseada no que já existe, já que o radical humano é apenas um.
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Sem Eco, 1943 | Maria Martins, Escultura | Reprodução fotográfica autoria desconhecida
Os entornos passam a se fundir com o que se considera a ideia ou o conceito, essa metamorfose constante é uma resposta a necessidade de englobar as intersecções que ocorrem entre aquele que se olha e qualquer coisa/acontecimento/ideia que existe em um mesmo meio.
A condição de existência humana pode ser pensada como mecanismo homeostatico de equilíbrio sobre o meio e o ser, no qual existe a necessidade de haver um balanço entre os conceitos que flutuam em cada periodo da existência, há uma preocupação eminente em relação ao entendimento desse balanço, ao passo que uns julgam-se capazes de determinar verdades, impondo o papel de dominação que não cabe a uma célula que vive em um organismo. É necessário absorver tudo aquilo que está em transformação. Absorver no entanto não sugere concordar.
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Cobra Grande, 1942 | Maria Martins, Escultura | Reprodução fotográfica Daniel Coury
A obra metamórfica da artista brasileira, Maria Martins, hoje considerada um ícone do modernismo brasileiro, representa com uma beleza e agressividade palpável a relação antropofágica existente entre os seres, sejam eles humanos ou não. Suas esculturas carregam uma tensão eminente de confronto, fruto do encontro de duas partículas, confronto esse que ao mesmo tempo que constroi-destroi, trazendo aqui aquela ideia da nossa constante relação com tudo que nos cerca e tudo que cercamos, uma mutualidade.
A transmutação que observamos em seu trabalho de formas quase que primitivas, é um movimento ao mesmo tempo de sedução e aversão, que caracteriza o misto de estranhamento e curiosidade que habita a mente humana.
Para conhecer melhor o trabalho da artista o documentário “Maria – não esqueça que eu venho dos trópicos” de Francisco C. Martins e Elisa Gomes nos traz uma visão muitas vezes apagada da artista e da sua importância na história da arte brasileira.
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Fontes:
COBRA Grande. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2018. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra14911/cobra-grande>. Acesso em: 04 de Abr. 2018. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7
O Impossível. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2018. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra35220/o-impossivel>. Acesso em: 04 de Abr. 2018. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7
SEM Eco. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2018. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra24767/sem-eco>. Acesso em: 04 de Abr. 2018. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7
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