Introdução
O termo “apropriar” engloba uma infinidade de práticas e modos de produção que vão desde a apropriação de objetos até a apropriação de ideias e as implicações das tipologias desse processo.
Esse estudo faz um breve levantamento de tais práticas e analisa, a partir de uma das clássicas obras de Degas, L’Absinthe, como o artista Rudson Costa extrai seu conceito e o transporta para nossa atualidade, fazendo-se compreender assim de que maneira a prática da apropriação leva a arte a estabelecer relações e conexões com a produção e o modo de vida contemporâneo.
Explorando os conceitos
A identidade da arte estaria descentrada desde a pós-modernidade. Nas palavras de Walter Benjamin, “houve a perda da aura do objeto artístico pela sua reprodução em múltiplas formas: fotografias, vídeos, etc.” Num contexto em que há uma prática recorrente de reapropriação estética de obras já consagradas, encaramos um eminente processo de recontextualização da identidade artística, o que consequentemente traz uma resemantização/ressignificação do conceito.
Pontuações relativas a autenticidade e autoria remetem à um dos aspectos mais controversos da arte: a apropriação. O termo é empregado pela história da arte para indicar a incorporação de outras obras, seja ela feita de maneira direta ou indireta, nos trabalhos de arte. “Apropriação”, em termos gerais, refere-se, basicamente, ao ato de alguém se apossar de alguma coisa que não é sua como se assim o fosse. Na arte contemporânea, essa expressão pode indicar que o artista incorporou à sua obra materiais mistos e heterogêneos que, no passado, não faziam parte do campo da arte, tais como imagens, objetos do cotidiano, conceitos e textos. Pode indicar também que o artista se apropriou de partes ou da totalidade de obras de terceiros.
A apropriação é uma linguagem comum em se tratando de arte moderna, o autor Affonso Romano de Sant’Anna coloca que a linguagem utilizada pelos artistas denominados modernistas “se dobra sobre si mesma num jogo de espelhos” (SANTANNA, 1998, p.7).
De acordo com Barbosa (2005), apropriar-se concerne ao ato de retirar imagens ou objetos de seus locais de origem, utilizando-os para construir uma obra – ou outra obra. Releitura, por sua vez, significa, conforme Barbosa (2005), ler novamente, dar novo significado, reinterpretar, pensar mais uma vez. Posição afim assume Pillar (2003, p. 11), ao afirmar que reler é “um fazer a partir de uma obra, é recriar o objeto, reconstruindo-o num outro contexto com novo sentido; é uma criação com base num referencial”.
A temática, que se faz recorrente no contexto artístico desde as colagens cubistas de Pablo Picasso à trabalhos contemporâneos, pode ser tratada como forma de expressão, da qual se parte da obra para trazer a temática nela tratada para a atualidade – o que configuraria uma ‘Paráfrase’, bem como uma contextualização com intuito de trazer a obra original para um debate, o que configura uma leitura que muda o sentido original, chamada então de ‘Paródia’.
Roland Barthes atestava que “o texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura (…) O escritor não pode deixar de imitar um gesto sempre anterior, nunca original”. Partindo desses conceitos é que analisaremos como Rudson Costa lê e interpreta a obra do pintor francês Degas.
Contexto: L’absinthe – ou Dans un café – de Degas
Ao contrário de seus amigos impressionistas, Degas era um pintor essencialmente urbano, seu trabalho traz uma variedade de cenas da noite parisiense, desde shows de palco, atividades de lazer, entre outros.
Pintado em 1875-76, a pintura retrata duas figuras, uma mulher e um homem, que se sentam no centro e à direita do quadro. O homem olha para a direita, fora da tela, enquanto a mulher olha vagamente para baixo, fitando o vazio. Um copo cheio com absinto se encontra na mesa a frente dela. A cena retratada por Degas é uma representação do crescente isolamento social ocorrido em Paris durante seu estágio de crescimento rápido. Os modelos que ali aparecem são uma atriz, Ellen Andrée e um pintor e gravador boêmio, Marcellin Desboutin. O café onde eles se encontram é o Café de la Nouvelle-Athènes em Paris.Uma de suas icônicas pinturas, ‘Dans un café’, carrega uma temática recorrente em representações da atualidade, que trazem tanto a solidão enfrentada mesmo em meio à multidões bem como o preenchimento desse vazio através do que podemos chamar de ‘ópios’, ou seja, substâncias inebriantes que teriam o papel de trazer uma sensação de superação em relação ao problema enfrentado. Embora sentados lado a lado, os olhares dos personagens da pintura não se encontram, são bloqueados em um isolamento silencioso, os olhos vazios e tristes, com características caídas traduzem um ar geral de desolação. O enquadramento dá a impressão de um instantâneo tirado por um espectador em uma mesa próxima, que assim como os dois personagens retratados traz a ideia dual de proximidade física e distancia existencial.O enquadramento descentralizado com ‘cortes’ inusitados e a introdução de significativos espaços vazios, foi inspirado por impressões japonesas, mas Degas usa isso aqui para produzir um giro bêbado. A presença da sombra das duas figuras pintadas como uma silhueta refletida no espelho longo atrás delas também é expressiva e significativa.A pintura pode também ser encarada então como uma denúncia dos perigos do absinto. A dimensão realista é flagrante: o café retratado fora depois identificado, sendo o “La Nouvelle Athènes”, no lugar de Pigalle, um local de encontro para artistas modernos e um viveiro de boêmios intelectuais da época.
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A Apropriação
Ao retomar a linguagem anteriormente tratada por outro artista, ou melhor, em se tratando do desdobramento, ou releitura da linguagem à qual o autor cita, a paródia surge do diálogo da arte com a realidade daquela linguagem, e não apenas com a realidade externa do mundo ou do próprio artista.
A questão da reprodutibilidade carrega consigo o conceito de intertextualidade, que se origina no dialogismo – termo cunhado por Bakhtin – que se refere à elaboração da linguagem e sua origem que parte de estruturas significativas já existentes, portanto, a paráfrase (e também a paródia) é construída através de um efeito metalinguístico, estabelecendo um diálogo externo e traz para si várias vozes e perspectivas de terceiros. Ou seja, os textos, para Bakhtin, apresentam um caráter polifônico, ou seja, têm a presença de uma ou mais vozes, a obra visual apropriada é uma referência imagética que explicita bem o conceito proposto por Bakhtin já que traz sua referência – ou as ‘outras vozes’ às quais o autor se refere – de forma clara para criar seu próprio argumento, ou a obra final. O que Bakhtin e também os artistas que trabalham a apropriação vêm questionando ao longo dos tempos é o fato de que toda produção se origina e tem influência de produções anteriormente existentes.
Sant’Anna traz em sua análise sobre o conceito de paráfrase a ideia de tradução, ou seja, entende-se a paráfrase como a reafirmação do sentido de um texto através da utilização de outras palavras, o que dessa forma permite que o autor mantenha o sentido impresso na obra original e ainda assim faça alterações para que sua visão sobre tal seja impressa na nova obra. Dessa forma, a paráfrase é uma interpretação do texto inicial, com o que podemos chamar de um pequeno deslocamento afim de manter uma vigência ideológica e por isso nesse caso não podemos considerar a obra analisada uma paródia, como indicaria o nome da série a qual compõe, já que no caso da paródia há um distanciamento radical da releitura e da obra original, visto que há uma inversão total de seu sentido, efeito muitas vezes alcançado através da utilização da ironia como recurso principal do discurso.
Apesar dos conceitos apresentados e das considerações feitas é importante ressalvar que os conceitos de intertextualidade só se concretizam através do olhar da audiência, já que a análise feita pelo receptor depende de seu repertório, no caso da obra analisada não seria possível resgatar a solidão atemporal fielmente representada na releitura apresentada por Rudson Costa se não constasse ao observador o conhecimento da obra de Degas, o que descontextualizaria por completo a ideia.
O artista plástico brasileiro Rudson Costa, em sua obra que compõe a série ‘Paródias Iconoclastas’ traz para a contemporaneidade a angústia e a solidão retratada na obra de Degas, L’Absinthe porém agora, em vez da garrafa de absinto e luz de velas, o artista posiciona hambúrgueres e batatas fritas do Mc Donald’s, uma consagrada rede mundial de lanchonetes, transpondo a melancolia retratada por Degas em um bar do século XIX para uma lanchonete no século XXI, trazendo à tona a atemporalidade do conceito inicialmente trabalhado pelo pintor francês, exatamente o discutido por Walter Benjamin no capítulo ‘A Obra de Arte Difícil’:
“Buscando o específico artístico, desenvolveram uma posição eminentemente descritiva onde o morfológico substituída, metodologicamente, as aproximações psicológicas ou sociológicas que acabavam estudando não a obra propriamente dita, mas aquilo que nela estava refletido; ou seja, as circunstâncias externas que haviam determinado sua produção.” (Página 33, 1955)
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Ao reproduzir a obra com grande afinidade ao trabalho de Degas, tanto em forma quanto em estilo, mas acrescentar na mesma um conhecido elemento da cultura do século XXI a relação estabelecida entre o conceito retratado por Degas é imediatamente transposto para o presente, a escolha pela manutenção da estética impressionista facilita o reconhecimento da referência utilizada bem como facilita o contraponto de comparação entre passado e presente, e como apesar das drásticas mudanças que ocorreram durante esses tempos, não apenas sociais mas tecnológicas, estruturais, econômicas, entre outras, a condição humana, bem como sua fragilidade e suas incongruências e incoerências se mantém as mesmas.
É interessante poder analisar que o pressuposto existencialista do homem se transpõe através do tempo, bem como sua necessidade de escape da realidade, não são solucionadas através do que podemos analisar como distrações – ou prazeres – momentâneos. A mesma desolação captada por Degas no século XIX serve como reflexão para o contraponto entre as evoluções que ocorreram no exterior, ou no mundo, e as que não ocorreram no interior, ou no próprio ser humano como ser pensante.
Conclusão
Em ‘As palavras e as coisas’ Foucault faz um resgate para mostrar como surgem os conhecimentos. Na mesma obra o autor apresenta um excerto de um texto de Borges para mostrar que há novas possibilidades de produção na qual não há denominador comum, criam assim algo novo, um positivo. Era isso que os modernistas faziam, e o que Rudson traz em sua interpretação.
Segundo Henri Galati (Museu de Arte de São Paulo) a diferença entre a releitura e a cópia é que na primeira haver uma interpretação clara do artista que a desenvolve, e é o que podemos ver quando Rudson coloca no lugar da garrafa de absinto uma bandeja com lanches do Mc Donald’s. Ainda de acordo com Galati a semelhança não caracteriza um problema, apenas a cópia pela cópia.
A paráfrase apresentada pelo artista é uma transposição de uma reflexão, elucidando a sua existência em tempos antigos e expondo sua continuidade nos dias atuais.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
BARTHES, Roland. O rumor da língua. Lisboa: Edições 70, 1984.
BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. In: Obras escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1987.
BETTS, Nancy C. Intertextualidade e contratos comunicacionais: apropriaçõessemi[oticas na obra de Nelson Leirner. PUC/SP, 2002.
BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. Rio de Janeiro: Ed. Martins Fontes, 2011.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
Obras Comentadas da coleção do Museu de Arte Moderna de São Paulo. São Paulo, 2007.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Paródia, parafrase & cia. São Paulo: Ática, 1998.
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