Em teoria viver na contemporaneidade é saber analisar com cuidado a historicidade do que você defende, mas como já sabemos não é bem assim que funciona, ou seja, as contradições são quase que uma base edificadora do nosso dia a dia.
É engraçado ter acesso a tanta informação e ainda assim saber tão facilmente ignorar aquilo que faz parte da nossa construção histórica. Bem, depois das declarações polêmicas da ministra Damares, por algum motivo dei de cara com duas retratações interessantes que compõem o conjunto de liturgias-histórias-lendas do catolicismo.
Quero começar então fazendo um questionamento: podemos dizer que temos ícones queer na igreja católica?
A teoria queer (do inglês: queer theory) é uma teoria sobre o género que afirma que a orientação sexual e a identidade sexual ou de género dos indivíduos são o resultado de um constructo social e que, portanto, não existem papéis sexuais essencial ou biologicamente inscritos na natureza humana, antes formas socialmente variáveis de desempenhar um ou vários papéis sexuais.
Pensando dessa forma, nos distanciamos da normatividade regente para conhecer um pouco das duas histórias que quero apresentar para vocês hoje: a Santa Wilgefortis e a Hairy Mary.
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St. Wilgefortis – Chapel of Our Lady of Sorrows / Loreto Church – Praga
A lenda conta que a jovem Wilgefortis, filha de um rei cristão português, fora prometida em casamento para um rei pagão, como ela havia feito um voto de castidade, prometendo dedicar sua vida à Igreja, Wilgefortis não viu outra saída a não ser rezar para que se tornasse absolutamente indesejável pelo rei, e Deus a respondeu fazendo com que ela crescesse uma barba. O feito causou grande raiva em seu pai, que mandou crucificar a filha virgem como forma de pagar pelos seus pecados.
A história da Santa Wilgefortis se popularizou na Europa medieval, mas foi provada como mito no século 16. O surgimento do mito sobre a santa ainda é debatido, mas estudiosos acreditam que se deu devido ao Volto Santo di Lucca, uma famosa escultura da igreja na qual Cristo veste uma túnica longa que fora referida durante os tempos medievais como um vestido de mulher.
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Volto Santo di Lucca
A Santa Wilgefortis apareceu recentemente na capa do livro The Bloomsbury Reader in Religion, Sexuality, and Gender, publicado em 2017 por Donald Boisvert e Carly Daniel-Hughes. A introdução do livro traz uma reflexão que contribui bem com o que eu quero trazer em questão aqui:
“Wilgefortis adorna a capa deste leitor porque sua história oferece um exemplo convincente de como a religião e a sexualidade se cruzam. Revela, em primeiro lugar, como a sexualidade infunde regularmente a devoção e a identificação religiosa. Mas há algo mais aqui que solicita nosso interesse na história dessa santa. Isso indica que a santidade ou a sacralidade podem ser “queer”. Aqui, consideramos queer não como uma identidade (algo que Wilgefortis tem), mas como uma descrição de como sua história perturba binários normativos, como masculino/feminino e humano/divino.”
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Saint Wilgefortis, Germany, circa 1460-1470: Los Angeles County Museum of Art (LACMA)
Outra história interessante que podemos analisar é a da Maria do Egito, popularmente conhecida como Hairy Mary <sendo a tradução livre e literal Maria Cabeluda> De acordo com Sophronius, patriarca de Jerusalém, Maria do Egito nasceu em algum lugar no Egito em meados do século IV. Com 12 anos de idade, ela fugiu de seus pais para Alexandria, onde ela parece ter vivido uma versão de Sodoma e Gomorra, firmemente condenada por Sophronius, que rejeitava o prazer vindo de suas numerosas ligações amorosas.
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Mary Magdalene, Mary of Egypt, Margaret piercing a dragon, and a martyr holding a palm, from the Queen Mary Psalter, Royal MS 2 B VII, f. 308v
De acordo com Sophronius, Maria do Egito eventualmente foi a Jerusalém para a Exaltação da Santa Cruz, porém, ela não estava interessada no festival religioso, mas sim em busca de mais parceiros sexuais. No entanto, ela descobriu que não podia entrar na Igreja do Santo Sepulcro até que ela se arrependesse de seu estilo de vida e prometesse se tornar uma eremita. Cheia de remorso, ela viajou para o deserto, levando apenas três pães como alimento.
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Mary and her loaves, from the Taymouth Hours, Yates Thompson MS 13, f. 188v
Enquanto estava no deserto, Maria foi flagrada por São Zózimo, que lhe jogou o manto e a convenceu a contar sua história. Zósimo foi procurá-la novamente um ano depois, mas a encontrou morta e enterrou-a com a ajuda de um leão prestativo.
Algumas figuras que compõem a história contada pela Igreja Católica abrem precedente para uma discussão interessante: apesar do anacronismo a análise se torna válida para entendermos que embora o conceito tenha sido desenvolvido na atualidade, a história da humanidade mostra que essas figuras de representatividade já existiam.
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